Sobre laranjas, panelas e o desejo de compartilhar as experiências humanas"

 "Sobre laranjas, panelas e o desejo de compartilhar as experiências humanas"
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Já faz algum tempo que as relações humanas viraram um nicho de mercado. Não raro encontrarmos em sites, livrarias e mídias sociais materiais de todo o tipo que concentram explicações, tutoriais, rituais ensinando às pessoas técnicas e macetes para relacionarem-se melhor. Geralmente, isso tudo é direcionado para o âmbito das relações amorosas e/ou conjugais; não por acaso, aquelas que muitas vezes mais nos despertam angústia. Acredito que assim seja exatamente porque as relações amorosas consistem em experiências que abarcam não apenas as nossas fantasias e vivências mais íntimas conosco mesmos, mas principalmente as experiências que incluem o outro: um outro que, quando nos apaixonamos, sempre é território desconhecido e almejado para se desbravar e possuir.

O ápice de todas essas informações comumente se concentra em alguma colocação simplista e quase que autoritária, geralmente posta em forma de algum jargão ou frase de efeito fácil de ser fixada na memória "você não precisa de alguém para ser feliz", "você, e só você é responsável pela sua felicidade", "você é uma laranja inteira", e tantas coisas parecidas que mais parecem imperativos compactados em receitas prontas que cabem a todos e a qualquer um.

Os relacionamentos muitas vezes são o nosso calcanhar de Aquiles, e o são exatamente porque somos seres relacionais. Nós só existimos, material e psiquicamente, porque antes nós existiram outros que nos inseriram na experiência de existir, e isso significa que é absolutamente impossível a qualquer ser humano não precisar de outra pessoa. E desde então, desde as nossas relações primeiras, experimentos diversos conflitos que nos inserem no contexto humano, nos guiando, inclusive, ao desenvolvimento da capacidade de amar e experimentar tantos significados delegados ao amor, que não é apenas um sentimento e muito menos uma simples escolha.

A questão é que o ser humano nasce com uma falta. Todos temos no meio do peito um buraquinho chamado "falta": aquilo que nos angustia, mas que também nos leva ao movimento. E quando a falta doí, tendemos a repetir uma ação quase que natural na busca das satisfações: assim como buscamos água ao sentirmos sede, assim como desejamos algo delicioso quando sentimos fome, quando a falta apita, tendemos a buscar algo que a preencha, algo que a faça deixar de ser tão faltante e dolorida. Começa-se então uma jornada por aquilo que supostamente nos complete e promova prazer, por um algo ou alguém que de qualquer maneira traga alívio e plena satisfação. No começo, de alguma forma, isso até parece possível, dado todo o encantamento que traz o fato de se estar apaixonado, mas depois notamos que o outro também tem seus poréns e suas ausências. E notamos também que, não importa o quanto de faça, a falta ainda estará lá, e nada parece ser suficiente. Este é o momento em que comumente nos frustramos, mas é também o momento em que podemos aprender uma lição deveras valiosa: não existe completude, tudo é complemento.

Nesse sentido, as experiências que eu vivo com alguém não completam o meu ser, mas o complementam, agregam. E é por isso também que, a despeito do que tanto se diz por aí, está realmente tudo bem se você quiser viver algo bacana com alguém, encontrar a metadinha da laranja ou a tampinha da caçarola, porque todos nós precisamos sim de pessoas para compartilhar experiências, construir coisas e complementar nossa existência. Mas tenha sempre em mente que precisar é algo totalmente diferente de depender. Uma panela sem tampa ainda é perfeitamente capaz de preparar pratos saborosos, assim como uma banda de laranja também rende um suco fresquinho.

Um amor próprio sobre o qual tanto se fala por aí é uma experiência que incluí a existência de um outro, não que a exclui. Uma pessoa só é capaz de amar a si mesma se pôde, antes disso, viver experiências de amor que a permitiram saber que é possível sustentar a própria presença, e esta é uma experiência que só se dá, necessariamente, a partir do contato com o outro.

Para além de seguir imperativos marcados que ditam como devem ser a intimidade de cada um, cabe a nós mesmos trabalharmos para aprender a lidar com a falta. Não importa quem chegue, não importa quem se vá, a falta ainda estará lá, no meio do peito, enquanto estivermos vivos, e um dos maiores limiares a serem atravessados é exatamente aprender a lidar com ela. Dois seres faltantes não formam um inteiro, mas se auxiliam nas dores do existir.

E a isso, sim, podemos chamar amor.


Texto de Juliana Piccoli - Psicóloga (CRP 06/124567)


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